HQ: Maus - A história de um sobrevivente
*Marcelo Forlani
Você escreveria a biografia de seu pai se tivesse a certeza
de que ele era uma pessoa extremamente mesquinha, mal humorada e possivelmente
culpado pelo suicídio de sua mãe? Pois o norte-americano Art Spiegelman fez
isso em Maus.
As histórias foram publicadas originalmente na revista
underground Raw entre 1980 e 1991. Sócio-fundador e editor da publicação, Art
Spiegelman compilou um primeiro volume em 1986, com o título Maus - A história
de um sobrevivente, cujo subtítulo era Meu pai sangra história. Cinco anos
depois, Maus II - E aqui meus problemas começaram chegava às ruas. Em 1992 ele
ganhou o prêmio Pulitzer, um dos mais conceituados do meio jornalístico e
literário, e nunca antes dado a uma HQ.
Mas o que torna esta Graphic Novel tão especial não são os
prêmios, mas sim os motivos que a fizeram tão laureada. Art usou esta mídia
discriminada e geralmente associada a obras infantis para falar de uma das
maiores atrocidades da história recente da humanidade: o Holocausto. Os pais de
Art, os poloneses judeus Vladek e Anja, sobreviveram a Auschwitz e migraram
para os Estados Unidos, onde ganharam uma segunda chance e um novo filho, o
próprio Art. O primeiro rebento do casal, Richieu, não teve a mesma sorte e,
junto com tantos outros parentes e amigos dos Spiegelman, morreu na sua Polônia
natal.
Art aprendeu a duras penas que sobreviver a Auschwitz não é
necessariamente continuar vivo. Além de agüentar todas as manias que seu pai
adquiriu no período em que foi prisioneiro dos nazistas, ele viu sua mãe se
deprimindo até chegar ao ponto em que não aguentava mais e acabar se
suicidando.
Amor e guerra
Art e seu pai não eram muito próximos. Mas assim como outros
filhos de judeus que passaram sua vida ouvindo as mais horrendas histórias
sobre os campos de concentração e em determinado momento passaram a buscar suas
raízes, ele resolveu transformar as memórias de seu pai em quadrinhos. A
escolha por esta mídia era a mais lógica para ele, que sempre gostou e leu
muitas HQs. Mas o resultado final é uma aula de como usar os quadrinhos para
contar uma história. Art mostra as conversas (e discussões) que ele teve com
seu pai como se estivessem acontecendo naquele momento, a história de seus pais
em flashback, fotos, antropomorfismo, história em quadrinhos dentro da história
em quadrinhos, detalhamentos de esquemas desenhados por seu pai de como eram os
esconderijos, mapas, etc.
O desenho de Spiegelman, bem sujo, é uma conseqüência do
estilo da Raw, mas serve também para mostrar que aqueles ratos não são
bonitinhos como os desenhados por Walt Disney. O antropomorfismo que transforma
judeus em ratos, nazistas em gatos, norte-americanos em cães e poloneses em
porcos reflete a estrutura da vida naqueles dias. Sem nem saber o porquê, os
gatos correm atrás e matam os roedores. Na escolha dos orelhudos para
representar os judeus há também uma referência ao termo com que os nazistas se
referiam à raça inferior: vermes da sociedade; e ainda uma resposta à afirmação
que abre o primeiro capítulo: Sem dúvida os judeus são uma raça, mas não são
humanos, de Adolf Hitler.
Manual de sobrevivência
Mostrando a forma mandona e teimosa de seu pai, Art começa a
história do jeito que Vladek lhe conta, antes mesmo da época em que conhecia
Anja ou sua segunda esposa, Mala. Naqueles dias ele era muito bonito e tinha
várias namoradas, mas nada muito sério. Quando conheceu aquela pequena menina-rica
de Sosnowiec, o cupido o acertou em cheio. Vladek lutou até mesmo contra os
impulsos de Anja, que por um tempo acreditou que ele só estava interessado na
fortuna de sua família. Quando a vida dos dois começava a se acertar, os
alemães chegaram à Polônia. Deste momento até o fim do livro, os dois passaram
por separações, privações e perdas constantes, mas sempre conseguiram arranjar
um jeito de se ver ou se comunicar.
Assim como Auschwitz mudou de formas diferentes as vidas das
pessoas que passaram por lá, a maneira como cada uma delas conseguiu sobreviver
também é bastante variada, mera obra do acaso. Como o dinheiro que cada um
tinha fora dali já não existia mais, era bastante comum haver traições até
mesmo de judeus contra judeus. Vladek caiu em algumas delas e conseguiu se
salvar com a ajuda de pessoas que ele conhecia, do seu trabalho árduo, dos seus
contrabandos e escambos, da sua inteligência, e, claro, da sua sorte. Pela
simples falta de qualquer um destes itens seis milhões de judeus morreram na
Segunda Guerra Mundial.
Enquanto isso, do outro lado do mundo...
Por mostrar de forma tão gráfica o sofrimento diário, Maus e
o japonês Gen - Pés descalços (de Keiji Nakazawa) são provas de que história em
quadrinhos não é só coisa de criança. As duas obras ambientadas na Segunda
Guerra mostram de formas diferentes e diferenciadas que é possível tratar temas
sérios como o Holocausto e o bombardeamento em Hiroshima nas HQs.
Se a Conrad Editora fez um ótimo trabalho na publicação da
obra japonesa aqui no Brasil, a Cia. das Letras confirma com este livro que
quer o seu lugar entre as principais editoras de quadrinhos do país. O título
não era inédito por aqui - havia sido lançado nas versões separadas pela Ed.
Brasiliense em 1986 (Maus I) e 1995 (Maus II) -, mas estava esgotado há tempos
e merecia uma nova edição à altura da sua importância. Finalmente ganhou. Além
de um papel de alta qualidade e o preço bastante acessível (R$ 39 por 300
páginas de leitura ininterrupta), a tradução manteve o sotaque alemão do
protagonista e traz a novos leitores a dificuldade de Art Spiegelman de
conviver com seu pai. Se estivesse vivo, até o resmungão (e às vezes racista)
Vladek, ficaria orgulhoso.
*02 de Agosto de 2005
MAUS - Art Spiegelman
Cia das Letras - 296
págs.